
(...) Quem deseja a vida boa para si próprio, de acordo com o projecto ético, tem também que desejar que a comunidade política dos homens assente na liberdade, na justiça e na assistência.
A democracia moderna tentou, ao longo dos dois últimos séculos, estabelecer ( primeiro na teoria e depois, pouco a pouco, na prática) essas exigências mínimas que a sociedade política deve cumprir: são os chamados direitos humanos, cuja lista é apenas, para nossa vergonha colectiva, um catálogo de bons propósitos, e não de efectivas conquistas. Insistir em reivindicá-los por completo, em toda a parte e para todos, e não só para alguns, continua a ser a única iniciativa política de que a ética não se pode alhear.
(...) O que me parece evidente é que muitos dos problemas que hoje se nos põem, aos cinco mil milhões de seres humanos que enchem o planeta ( e o número, infelizmente, tende a aumentar), não podem ser resolvidos nem sequer bem colocados a não ser de forma global, em termos mundiais. Pensa na fome, que ainda mata tantos milhões de pessoas, ou no subdesenvolvimento económico e educacional de numerosos países, na sobrevivência de sistemas políticos brutais que oprimem sem contemplações o seu povo e ameaçam os vizinhos, no desperdício de dinheiro em ciências armamentistas, na pura e simples miséria de um número demasiado grande de pessoas, mesmo nas nações prósperas, etc.
Creio que a actual fragmentação política do mundo
( de um mundo já unificado pela interdependência económica e a universalização das comunicações - mundo globalizado), só serve para perpetuar estas marcas e paralisar as soluções que se proporcionem.
(Savater, Ética para um Jovem)
« Não é o Homem, são os homens que habitam este planeta. A pluralidade é a lei da Terra»
( Hannah Arendt, A Vida do Espírito)
« Se eu soubesse de alguma coisa que me fosse útil e fosse prejudicial à minha família, expulsá-lo-ia do meu espírito. Se soubesse de alguma coisa útil para a minha família e que o não fosse para a minha pátria, tentaria esquecê-la. Se soubesse de alguma coisa útil para a minha pátria e que fosse prejudicial para a Europa, ou que fosse útil para a Europa e prejucicial para o género humano, consideraria isso um crime, porque sou homem necessariamente, ao passo que francês somente o sou por acaso».
( Montesquieu)
Metamorfoses e "milagres" da Era da Tecnologia e do Conhecimento:
A sociedade contemporânea tem caminhado no sentido da complexidade e, para isso, muito contribuiu a nova ordem mundial instalada após a derrocada da URSS, desmembramento da Checoslováquia, eternização do conflito Israeloárabe, etc. Mudou o "mapa do mundo" e, com ele, as lógicas geoestratégicas que em quase nada fazem lembrar as antigas tensões entre os dois Blocos ( entenda-se as duas super-potências que alimentaram durante décadas a chamada "Guerra Fria" - que, afinal, manteve o suposto apocalipse latente, "em lume brando", durante décadas.
A nova ordem, a da Globalização, alimenta-se de outras lógicas e de novas tensões, catalizadas pelo fulgor da Sociedade de Informação e Comunicação que alastra os seus tentáculos com a matriz da irreversibilidade e da celeridade. Neste vórtice instalado à escala planetária, a humanidade esfalfa-se por acompanhar os novos "desafios" constantemente propalados, até à exaustão, como veículos para uma vida melhor, mais solidária e mais justa: refiro-me aos desafios contemporâneos da adaptação, da formação, da competitividade, do empreendedorismo e outros, assumidos pelo(os) diferentes poder(es) político(s) instalado(s), como imperativos da modernidade. A este e outros propósitos, convido-vos a ler e a reflectir o seguinte excerto:
" (...) Nos começos do século XX, autores de ficção científica e utopistas imaginaram que estávamos a caminho de uma civilização do ócio, na qual se trabalharia menos e haveria mais tempo para o descanso, a criatividade e o jogo; (enfim, mais tempo para a Felicidade).
O que aconteceu foi algo de parecido , mas sob um signo bastante (...) sinistro. Em vez de alcançarmos a civilização do ócio, vivemos na civilização do desemprego. Esta é composta por grupos de pessoas que trabalham muito, horas e horas, mas só para defenderem os seus postos de trabalho , para que não lhos tirem. As pessoas chegam ao ponto de renunciar aos seus períodos de descanso e obrigam-se a fazer horas extraordinárias.
Por outro lado, há outros milhões de pessoas que não têm acesso ao trabalho, vivem no desemprego, da assistência pública no melhor dos casos, porque em numerosos países são simplesmente indigentes que não têm maneira de conseguir quaisquer rendimentos.
Esta situação contraditória fez com que se produzisse uma modificação no sentido do ócio. Este deixou de ser um tempo de descanso. Tornou-se o momento do gasto, do consumo. Assim, esforçamo-nos mais e sofremos maior stress nos momentos de ócio do que nos de trabalho. Porque é nos momentos de ócio que cada um tem que pensar em que e como comprar tudo aquilo que o diverte ou que lhe pode proporcionar a ilusão de um estatuto superior ( para não referir as cargas que se trazem para casa, de produtos necessários à subsistência da família no decurso das semanas e dos meses de labor intenso).
Neste regime desproporcionado de trabalho, uns morrem de enfarte por excesso de ocupação, enquanto outros morrem de fome ou de abandono, por terem perdido as possibilidades de integração laboral na sociedade.
Porque é que o trabalho está tão mal repartido e não se podem equilibrar estas desproporções? O que sucede é que o trabalho passou, hoje, a ser um bem social, um caminho não só de produção, mas também de integração na comunidade. As pessoas têm necessidade de trabalhar não só para comerem, mas para não se sentirem excluídas da utilidade e do reconhecimento social.
Creio que um dos grandes desafios económicos, sociais e políticos do século XXI é o de alcançarmos uma repartição justa da procura laboral, para evitar que continue a escavar-se o enorme fosso que separa os países onde existe trabalho dos outros, condenados a um "ócio" forçado.
F. Savater, Os Dez Mandamentos no Século XXI, Ed. D. Quixote